EDIÇÃO 2020 - TEMA
Foto: Luan Batista
"quando a terra se converte num altar, a vida se transforma numa reza”.
Mia Couto
t.e.r.r.a: o manifesto
por: Paula Lira
ela tem falado conosco. você escuta? a sente em seus ossos? seu chamado é silenciado pelo plástico, é sufocado pela fumaça e abafado pelo barulho. mas ela segue chamando dentro de nós e nas pessoas ao nosso redor e nós seguimos cegos pelas telas de celulares e surdos com nossos fones de ouvido. seguimos anestesiados de açúcar, conservantes e drogas prescritas, buscando recompensas em compras inconscientes, um pilha de coisas e salários maiores. uma busca eterna para preencher um vazio. um buraco que ecoa a falta que ela nos faz.
agora ela grita, pedindo silêncio e respiro, clamando por tempo e ar puro. para sobrevivermos, ela nos obriga a calar, a aquietar dentro de casa, a olhar ao nosso redor e a refletir junto dela o que raios temos feito com nossas vidas. o que está lá fora, também está aqui dentro. também estamos sendo silenciados, sufocados e abafados. temos cuidado de nossa casa e nossa família? priorizando o que realmente importa? temos cuidado dela como nosso lar e de todos os seres como nossos parentes?
hoje, ela nos obriga a ver e a escutar a verdade. é tempo e ele está se esgotando.
ela é a casa em chamas. "eu quero que vocês estejam em pânico. quero que vocês sintam o medo que eu sinto todos os dias. e eu quero que vocês ajam. quero que ajam como agiriam em uma crise. quero que
vocês ajam como se a casa estivesse pegando fogo, porque está" (Greta Thunberg).
ela é a casa em chamas.
ela é o solo seguro e sagrado sob nossos pés, por onde se espalham nossas profundas
raízes e a memória de nossos ancestrais. ela o chão fértil que germina nossos alimentos e
remédios. ela é a árvore que nos abriga e fornece sombra e alimento. ela é a mata e a
floresta, a tundra e a taiga, as savanas e o cerrado, as pradarias e os pampas, a restinga e
a caatinga, o pantanal. ela é as montanhas e as cavernas. ela é o ar que respiramos, o
vento que nos traz a chuva e nos fez navegar. ela é a lama que nos formou. ela é a água
que bebemos, a chuva que limpa e fertiliza, os rios e cachoeiras, os mangues. ela é os
oceanos que cobrem 71% de sua superfície, que deram origem a vida e que ajudam a
limpar nosso ar. ela é o fogo que transforma, que nos aquece e protege, o calor que cozinha
nossos alimentos e nos fez evoluir.
ela é os caminhos e a encruzilhada, a prosperidade, fartura e a fertilidade. ela é a arte e o
conhecimento. ela é a vida e a morte. ela é a doença e a cura. ela é o útero. ela é o
mistério. ela é o amor. ela é a deusa. a Grande Mãe. ela é o nosso planeta azul de 4,56
bilhões de anos. ela é todos os seres vivos de todos os reinos. ela é a pessoa ao seu lado e
da outra parte do mundo. e ela fala em nós e através de nós, pelas vozes de jovens
ativistas, de velhas bruxas e de líderes indígenas. “tudo tem espírito, desde um inseto até
um boi. as plantas, os animais das terras e das águas”. (Raoni Metuktire)
mas nos esquecemos, de quem ela é e de quem nós somos.
“Se as pessoas não tiverem vínculos profundos com sua memória ancestral, com as
referências que dão sustentação a uma identidade, vão ficar loucas neste mundo maluco
que compartilhamos” (Ailton Krenak)
perdidos, sem memória ou respeito nós a mutilamos, rasgamos suas rochas, envenenamos
sua água, queimamos seu solo, intoxicamos seu ar e enchemos de plástico seus oceanos,
caçamos cruelmente seus animais. Impactamos tanto, que não há como negar que nós por
muito tempo fomos e ainda somos seus inimigos, renegando nossa própria mãe e lar. nos
matamos também. todos os dias. por ganância, território, intolerância e ignorância. não nos
respeitamos também, não nos cuidamos. e agora pagamos o preço.
nossa pegada neste chão é tão grande que somos uma era geológica, a era antropocênica.
que teve sua primeira fase no início na revolução industrial em 1800, quando acendemos as
fornalhas de nossas fábricas e escolhemos queimar carvão e pessoas em nome do
progresso. a partir de 1950, vivemos a grande aceleração, a segunda fase da era, com uma
população dobrando de 3 a 6 bilhões de pessoas e passando de 40 para 800 milhões de
automóveis, além de uma corrida insana pelo consumo. foi em 92, no Rio de Janeiro, que o
mundo ouviu pela primeira vez o termo “desenvolvimento sustentável” e “sustentabilidade”,
no que ficou conhecida como a cúpula da terra, ao mesmo tempo, vivia a globalização, a
expansão do agronegócio e dos produtos descartáveis e baratos, o auge do consumismo. a
segunda fase, para alguns, seguiu até 2015, mesmo ano do Acordo de Paris. estamos
agora, na terceira e decisiva fase desta era. em um tempo de despertar.
não há como voltar atrás, refugiados de guerra e das consequências das mudanças
climáticas já são uma realidade, cidades inteiras estão afundando ou sendo destruídas por
desastres naturais e crimes ambientais. queimadas já cruzam estados e países, destruindo
casas, animais e biomas inteiros. povos já lutam por água e por um pedaço de chão seguro.
animais e plantas já estão em extinção. nosso tempo para se adaptar rapidamente às
mudanças é curto.
e enquanto povos tradicionais, indígenas e quilombolas, empreendedores, agricultores
orgânicos, ativistas, ambientalistas, cientistas, professores, artistas, políticos e pessoas
anônimas se esforçam para minimizar os danos para os mais pobres, criar soluções,
proteger o que resta e conscientizar as pessoas. temos um governo que incentivam o
consumismo, o desmatamento, a degradação e o genocídio. o brasil é um dos países que
mais mata defensores ambientais, em 2017 foram 57 ativistas e só em 2019 foram
assassinadas no mínimo sete lideranças indígenas. no primeiro trimestre de 2020, o
desmatamento na Amazônia bateu recorde de 796 km2, o equivalente a quase 80 mil
campos de futebol oficiais.mesmo nos tempos atuais, o progresso não pode parar.
no mundo, a humanidade está de quarentena, com sua responsabilidade sendo
escancarada a cada dia. estamos isolados apavorados por um vírus e sem nós nas ruas, o
ar está mais puro, o planeta mais silencioso, a água menos turva, os animais mais seguros.
a saúde, a ciência e o cuidado ganharam destaque. estamos reconhecendo o privilégio de
quem tem casa e pode se abrigar. o esforço dos que se arriscam para curar e para manter
os serviços básicos. as pessoas estão começando a ser mais importantes do que o
dinheiro. será que enfim estamos despertando de nosso grande sono?
se faz urgente que retornemos às memórias de nossos ancestrais, que sabiam tão bem
como viver em harmonia e equilíbrio com a natureza. precisamos de uma vez por todas
repensar, reduzir, reutilizar e reciclar. rever nossos hábitos de consumo, da alimentação,
aos veículos, passando por nossas roupas, eletrônicos e fontes de energia e combustíveis.
necessitamos aprender a respeitar, cuidar e a amar a nós mesmos de verdade e aos outros
seres vivos deste mundo. viver todos os dias com propósito, responsabilidade, consciência
e reverência. “você deve agir como se fosse possível transformar radicalmente o mundo. e
você deve fazer isso o tempo todo”. (Angela Davis)
como bem diz o escritor moçambicano, Mia Couto, "quando a terra se converte num altar, a vida se transforma numa reza”.
a terra tem falado conosco. agora você escuta?